terça-feira, 25 de março de 2014

Em defesa da liberdade científica e técnica e da qualificação da Administração Pública

Reproduzimos na integra o comunicado da Comissão Nacional Portuguesa do ICOMOS.


Em vésperas do quadragésimo aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974, que vivamente saúdam, as Comissões Nacionais Portuguesa do Conselho Internacional dos Museus (ICOM) e do Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios (ICOMOS), cuja actividade plena e a própria exigência efectiva se ficam também a dever ao Regime Democrático, entendem dever reafirmar conjuntamente alguns dos postulados básicos que, na área do património e dos museus e da intervenção dos seus respectivos técnicos, conformam a vida social deste período da história nacional.

Recordarão os mais atentos que um dos primeiros combates do pós-25 de Abril de 1974 foi o da defesa dos valores e dos bens de memória colectiva do País. Neste como noutros casos, podemos dizer, com orgulho, que aprendemos com a História, tal como os primeiros republicanos aprenderam também com o descalabro patrimonial ocorrido na primeira metade do século XIX, após a sucessão cumulativa dos desastres causados pelas Invasões Francesas, as Guerras Liberais e a Extinção das Ordens Religiosas. Foi então incentivado o exercício da acção popular em geral e em particular através do pujante movimento das Associações de Defesa do Património (ADPs), bem como das campanhas de inventariação e sensibilização que percorreram o País na segunda metade da década de 1970, dando lugar a um novo quadro societário, que cedo encontrou tradução na legislação nacional, seja na primeira Constituição Democrática, de 1976 (Direito de acção popular: Artº 49º; Obrigação de preservar, defender e valorizar o património cultural do povo português: Artº 78º), seja na primeira Lei do Património Cultural Português, de 1985 (Direitos especiais das ADPs: Artº 6º; Direito de Acção Popular: Artº 59º) e em leis constitucionais e para-constitucionais subsequentes, até à actual Lei de Bases da Política e do Regime de Protecção e Valorização do Património Cultural, de 2001, que igualmente contempla ambos os princípios, respectivamente nos seus Artº 9º e 10º.
 
Os direitos referidos foram depois (conjuntamente com todos os restantes decorrentes do exercício de liberdades fundamentais, em especial os de expressão, de opinião, de criação cultural e de criação e investigação científicas), vertidos em legislação subordinada, entre a qual a referente às normativas do exercício de funções públicas e nomeadamente ao Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas, que não somente considera que todos os deveres funcionais se encontram limitados pela Constituição e pela Lei, como explicitamente reconhece constituir o exercício de direitos uma circunstância dirimente da eventual não observância dos ditos deveres (Artº 21º da Lei nº 58/2008).
Também no plano internacional, os princípios indicados constituem fundamentos básicos de civilização. Com efeito, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclama, no seu artigo 19º, que “todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões”. E o mesmo princípio é defendido pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem (na primeira parte do n.º1 do seu artigo 10º) quando declara que “qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias”.

Vivemos, pois, dentro de um quadro civilizacional e mais especificamente, no que respeita a Portugal, constitucional e legal, que protege e mesmo incentiva o exercício das diferentes liberdades – e desde logo a liberdade de opinião e de expressão. Ora, os especialistas em cada área da vida social devem sentir-se especialmente abrangidos pelo exercício destas liberdades, posto que possuem qualificações particulares que os responsabilizam e que, aliás, lhes foram na maior parte dos casos outorgadas através de meios que envolvem, em maior ou menor medida, o todo nacional, pelos recursos colocados ao serviço da educação, da ciência e da própria formação cívica.

Não é, pois, aceitável que a livre expressão pública de uma posição de carácter técnico ou científico (ainda que essa posição incida valorativamente sobre práticas de entidades concretas), fruto, justamente, de saberes científicos ou técnicos, produzida em contexto académico ou profissional, ou ainda em fora mais vastos, como o dos meios de comunicação social, possa ser condicionada de forma administrativa, judicial ou penal. A acontecerem, estas situações revestem-se de extrema gravidade, por colidirem violentamente com a Lei nacional e com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português e por uma parte significativa da comunidade internacional, designadamente no espaço geográfico e cultural em que Portugal se insere.

Acrescem os códigos e procedimentos deontológicos e éticos decorrentes do exercício profissional, que no caso de organismos de direito público (as chamadas “ordens”) directamente vinculam os seus membros, e nos restantes casos podem e devem ser sempre usados como suporte das posições técnicas assumidas em sede de relação laboral ou equivalente, seja ela pública ou privada. Assim acontece em especial quanto a profissões ou sectores de actividade para os quais existam códigos internacionais sedimentados, nos quais se revejam as comunidades respectivas, em amplas áreas geográficas, como é o caso do ICOMOS e do ICOM. Estes dois organismos possuem documentos internacionais, no caso do ICOMOS a “Declaração de Compromisso Ético para os membros do ICOMOS” (mas também a “Carta de Veneza” com os seus desenvolvimentos e as Convenções da UNESCO) e no caso do ICOM, o “Código Deontológico dos Museus” que constituem uma espécie de cartas magnas, vinculativas dos seus membros e de todos os intervenientes nos sectores respectivos, sejam os do património ou o dos museus. Tanto o investigador como o especialista, mesmo quando no exercício de actividade regida por normativo contratual específico, deve sempre sentir-se obrigado não apenas ao exercício das suas liberdades e direitos, e ao respeito da Lei, como à observância dos princípios deontológicos e éticos da sua actividade, que envolvem obviamente princípios científicos e técnicos fruto da evolução do conhecimento ratificado internacionalmente. Se o fizer no âmbito do exercício de funções públicas, estes deveres tornam-se ainda mais prementes, pela natureza própria do que socialmente se exige do Estado e do seu aparelho administrativo, a que apenas cumpre servir o bem comum, se falamos em termos éticos, e do interesse público, se falamos em termos jurídicos.

A emissão de pareceres científicos ou técnicos constitui, neste contexto, um exercício de liberdade especialmente responsabilizante, mas por isso também não subordinável a quaisquer considerandos contrários, ou sequer somente diversos, dos da consciência do agentes envolvidos, baseados no seu pessoal e irredutível entendimento do “estado da arte” e das “boas práticas” nos respectivos campos disciplinares. Qualquer pressão em sentido adverso, deve ser rejeitada e, quando necessário, denunciada hierarquicamente, às estruturas associativas do sector relevante e ainda publicamente, em casos extremos e sempre no respeito pelos preceitos prudenciais eventualmente estabelecidos em sede deontológica.

Importa ainda defender estes princípios no quadro da defesa do reforço da qualificação e capacidade operacional da Administração Pública. A diminuição da autonomia dos técnicos na emissão dos pareceres que lhes sejam cometidos, constitui um poderoso elemento facilitador da captação do aparelho do Estado por parte de interesses particulares, e logo potencialmente lesivos do bem comum e do interesse público, sejam eles patrocinados directamente ou através de agentes intermediários. Ora, sobretudo num contexto em que as ideologias do “menos Estado” vêm fazendo o seu caminho, importaria que delas se retivesse a também defesa do “melhor Estado” – e não de um Estado deserto e dependente, um Estado de onde os mais qualificados tenham saído ou sejam ignorados e todos vejam diminuídas as suas margens de intervenção técnica, um Estado a que se impede fazer e de que se retira até e na prática a capacidade fiscalizadora, qualificada e independente. Ora, por acção ou por omissão, consciente ou inconscientemente, é este o perigo ou por vezes até já a situação real que vimos enfrentando em alguns casos em Portugal, e desde há vários anos, na área do Património Cultural e dos Museus, como aliás e a título meramente exemplificativo se revela em recentes episódios relacionados com a exportação ilegítima, ou mesmo ilegal, de bens móveis, ou com a defesa do património cultural subaquático e a consequente denúncia dos “caçadores de tesouros”.

Finalmente, convém sublinhar que as liberdades de parecer científico e técnico, indicadas anteriormente, devem incluir obrigatoriamente a possibilidade de erro. A ciência é, por excelência, o domínio do contingente. Nenhum investigador, nenhum especialista se deve auto-limitar no exercício da sua liberdade técnico-científica pelo receio de poder errar, se actuar exclusivamente em nome da sua consciência, cívica, científica e técnica, de acordo com o saber disciplinar do aqui e agora em que se pronuncia, conjugado com o seu percurso pessoal e as qualificações que lhe sejam legitimamente exigíveis no exercício das suas funções.

O princípio indicado, perspectivado no âmbito da relação laboral, é igualmente válido em sede de contencioso judicial. Neste plano, deve em especial atender-se a que o direito ao “bom nome” e a outras prerrogativas directamente conectadas, tendo por sujeitos passivos pessoas, empresas e demais instituições, públicas ou privadas, não pode nunca constituir álibi para a instituição de poderes de censura científica ou técnica. A invocação explícita de normativas nacionais ou internacionais, de boas práticas científicas e de códigos deontológicos, desde que adequada a cada situação concreta, deve sempre prevalecer sobre quaisquer outros considerandos.

Tenhamos sempre presente, investigadores e técnicos, empregadores e tutelas administrativas, órgãos do poder legislativo, executivo e judicial, que o exercício da liberdade, e de todas as liberdades e direitos concretos, constitui amiúde um risco, mas um risco que vale a pena correr, devendo por isso, ser incentivado e protegido.


As direcções do ICOM Portugal e do ICOMOS Portugal, em 25 de Março de 2014.
 

 

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